quinta-feira, 10 de abril de 2014

TÉCNICAS DE SOBREVIVÊNCIA EM APS - OS MAIS IGUAIS


Com o início do regime especial de atendimentos aos advogados, Dona Conceição foi designada para a honrosa tarefa. Contribuíram para isso dois fatores importantes: um, o fato de a servidora não simpatizar com advogados e, o outro, o fato de o chefe da agência não simpatizar com Dona Conceição. Ela viu tal destino como sinal de provocação e ameaçou dar cabeçadas na parede até conseguir um traumatismo craniano. E foi às vias de fato, uma vez que o gerente não fez nada para impedi-la. Já na quarta pancada, caiu desmaiada e sem alcançar o seu objetivo, o que demonstra que ela era cabeça dura não apenas em sentido figurado. Quando se recuperou, teve de ir para o balcão...
No começo era apenas uma fila de três ou quatro engravatados senhores. Com o tempo, a notícia foi se espalhando e a fila aumentando. Os segurados comuns sustinham resignados as suas senhas e espichavam o olho para a fila dos doutores.
Em pouco tempo os honrados senhores acharam por bem que era necessário que fossem atendidos em um lugar especial porque eram pessoas de superior estirpe. O gerente, muito a contragosto, deu-lhes a sala de JA e em sua porta foi colocada uma simpática plaquinha com os desenhos de uma gravata e um sapato de salto alto, indicando que o local era reservado para pessoas elegantes. É verdade que, de vez em quando, por erro de interpretação, entrava ali alguém apressado, pensando tratar-se de um banheiro, mas, fora isso, as acomodações estavam mais ou menos ao gosto da sofisticada clientela.
Não demorou muito para os segurados se associassem aos advogados para, através deles, obter os privilégios só a eles destinados. Todos, então, compareciam à APS escoltados por determinados defensores da lei, da ordem e da justiça, sem a intervenção dos quais, acreditavam eles, sequer um extrato de pagamento era emitido pelos desleixados servidores. A carreira jurídico-previdenciária florescia a olhos vistos. As gravatas, antes discretas, tornaram-se extravagantes, com estampas coloridas e até com desenhos do Mickey Mouse. A senhoras de tailleur abusavam dos saltos altíssimos que iam do vermelho fluorescente ao dourado.
O resultado de tudo isso é que dobrou o número de pessoas na agência. E, como era de se prever, as controvérsias começaram. Damos abaixo, a título de exemplo, uma muito interessante discussão ocorrida numa tarde de sexta-feira.
- Embora o senhor tenha chegado antes de mim, por uma questão de cavalheirismo, deve ceder-me a sua vez – disse uma advogada e recebeu como resposta:
- Dar-me-ia imenso prazer, mas, como a senhora pode notar, minha cliente também é uma mulher e, portanto, também tem a mesma prerrogativa que a senhora.
- Mas eu sou mais velha do que ela...
- Pode ser, mas minha idade somada à dela é superior à sua somada a do seu cliente.
- Alto lá – soou uma voz atrás deles; era o Dr. Gravatinha, já nosso conhecido. Quem tem que entrar na frente é a minha cliente que já está quase com dez meses de gravidez!
- Dez meses?! Então o senhor tem de leva-la imediatamente a um hospital porque esta criança está encruada! – replicou a advogada.
- Ora, é mesmo? Então vamos tratar do parto imediatamente. Preparem a perícia para o evento! – exigiu Dr. Gravatinha, dirigindo-se ao gerente que se aproximara para informar-se sobre o tumulto.
Ao ouvir a explicação de que o ambiente não era propício a um parto e que os peritos não estavam ali para isso, o advogado gritou:
- Nós vamos entrar com uma ação contra o INSS por omissão de socorro!
Um tanto nervosa, a parturiente segurou o Dr. Gravatinha pelo braço e disse que estava grávida de oito meses apenas e não de quase dez, como afirmara ele. Imediatamente se ouviu uma voz atrás deles a reclamar:
- Ora, então minha cliente deve entrar na frente da sua, pois já está com oito meses e meio de gravidez e, além do mais, eu puxo da perna.
- Data venia, mas e eu tenho um calo que muito me dói e que aposto incomoda mais do que a sua perna que não está submetida ao aperto de um sapato de couro – resmungou o Dr. Gravatinha.
Depois desta histórica data foi criada, de comum acordo, uma complicadíssima tabela de critérios para o atendimento prioritário cujos itens deveriam ser combinados de modo a precisar com exatidão a necessidade ou não de ser atendido como prioritária prioridade. Vejamos um exemplo: Um segurado com 30 anos de idade, com dor de dente e acompanhado de um advogado com 50 anos e uma pasta muito pesada poderia passar à frente de um segurado de 40 anos, sem dor de dente e cujo advogado tivesse 56 anos, mas que não carregasse uma pasta tão pesada quanto à de seu colega. Porém, se a pasta do segundo for acrescida de novos documentos de forma a pesar mais do que a pasta do primeiro advogado e a dor de dente do primeiro segurado melhorar durante a espera pelo atendimento, as posições deveriam ser invertidas. Note-se que há um certo grau de subjetividade na análise de componentes da equação como, por exemplo, a intensidade de uma dor de dente,  o que resultou em ocasionais divergências e algumas altercações.
 Passado alguns meses nesse complicado processo de seleção e após uma dúzia de reuniões, chegaram os advogados ao curioso consenso de que a melhor forma de atendimento seria através da distribuição de senhas.